História de um Vale

Histórias de um vale: o Alto Vale do Itajaí e suas ocupações humanas

A região do Alto Vale do Itajaí ficou conhecida pela sua história e cultura no Estado de Santa Catarina como vale europeu. Tal associação é relativa a imigração alemã, italiana e polonesa na região ocorrida no vale principalmente entre XIX-XX. No entanto esta forte construção identitária nas paisagens verticais obliteram a complexidade e diversidade de uma longa história de manejo ocupação ameríndia na região que se estende a pelo menos 9.000 AP.

As atividades propostas neste projeto se inserem em uma busca mais ampla pela compreensão das formas de uso e transformação de território por populações ameríndias na longa duração, dialogando com os saberes e fazeres compartilhados por estas populações e o conhecimento produzido sobre elas pelas pesquisas científicas.

O desconhecimento do passado pré-colonial, da sua cultura material e de todo patrimônio arqueológico associado as populações indígenas que ocuparam e em algumas áreas ainda ocupam as Matas de Araucária do Alto Vale do Itajaí representam uma enorme lacuna no conhecimento científico e histórico acerca dessa região, tanto para a arqueologia e para a história, como para a sociedade de maneira ampla.

Apesar da existência de diversos trabalhos de pesquisa acadêmica e de contrato que vem sendo feitas no estado de Santa Catarina, a grande maioria delas tem enfatizado as zonas planálticas e costeiras, sendo escassos os dados arqueológicos sobre a zona do vale e encostas. Dentre as pesquisas que se voltaram para esta região, vemos uma grande quantidade de sítios arqueológicos associados a uma surpreendente diversidade na cultura material e nos contextos arqueológicos a ela associados. Sítios em abrigos sob rocha, sambaquis fluviais, sítios a céu-aberto com solos escurecidos, estruturas subterrâneas, montículos, sítios líticos com estruturas fixas, entre outros exemplos nos mostram a riqueza ainda pouco compreendida desta região. Dentre estes distintos contextos encontramos uma variabilidade artefatual ainda mais diversa, com inúmeras pontas de flecha de forma e matérias-primas distintas, cerâmicas arqueológicas, sepultamentos humanos com distintas associações, além da variedade de estruturas e feições de armazenagem de vegetais e de combustão. Tal diversidade de contextos e vestígios arqueológicos tem sido estudada de maneira isolada pelos pesquisadores. Acreditamos ser importante compreender as relações e possíveis associações entre estes contextos sincrônica e diacronicamente, para compreendermos uma história da dinâmica cultural deste Alto Vale até a chegada da imigração europeia.

O conhecimento desta complexa e rica história tem sua relevância científica e acadêmica dentro da arqueologia brasileira, que há tempos se pergunta sobre a dinâmica da ocupação humana na região sul no contexto pré-colonial.

Mas para além da academia, esta pesquisa tem sua importância para os povos indígenas Laklãnõ Xokleng, moradores da terra indígena localizada nas proximidades de Ibirama. Atuantes como pesquisadores e colaboradores em diversas partes desta pesquisa, desde seu desenvolvimento até na escolha de seus produtos culturais, os Laklãnõ Xokleng tem na pesquisa um lugar de fala sobre sua perspectiva histórica e cultural.

Ao trabalhar nas escolas e comunidades fora da terra indígena, as palestras e oficinas realizadas durante a pesquisa contribuirão para diminuir o preconceito fortemente existente dentre a população do Alto Vale com relação as populações indígenas, favorecendo um reconhecimento cultural mútuo entre estes diversos coletivos com identidades e patrimônios culturais e históricos tão distintos, mas repletos de conexões e compartilhamentos.

Assim, este projeto pretende realizar uma pesquisa arqueológica para a produção e difusão do conhecimento científico de uma região do estado de Santa Catarina cujo patrimônio cultural ameríndio pretérito e contemporâneo ainda é muito pouco conhecido. Trata-se de uma pesquisa arqueológica interdisciplinar que busca no diálogo com a história, antropologia, ecologia e paleontologia compreender a história cultural de longa duração do Alto Vale do Itajaí. Além de publicar os dados gerados pela pesquisa em revistas científicas de excelência, nossa proposta intenta apresentar ações de extroversão para a sociedade em geral e, mais especificamente, para o povo indígena Laklãnõ Xokleng, cuja participação está prevista em diversas etapas da pesquisa.

Para executar esta pesquisa uniremos esforços de quatro professores do departamento de História, Ecologia e Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina, campus Florianópolis, além de serem alvo de duas pesquisas de pós-doutorado na Arqueologia desta mesma universidade e três pesquisas de doutorado entre a Arqueologia e a Ecologia, além de pesquisadores com experiência em arqueologia e Biologia.

O recorte espacial da pesquisa compreende espaços situados em variados compartimentos ambientais das sub-bacias hidrográficas do Alto Rio Itajaí onde ocorre expressiva densidade de sítios arqueológicos cadastrados e apenas parcialmente estudados. Apresentaremos no projeto em anexo as metodologias específicas a serem desenvolvidas para cada uma das três áreas piloto definidas, a saber: 1) Terra Indígena Ibirama/Laklãnõ e seu entorno; 2) Taió e entorno, e 3) Alfredo Wagner e entorno.

Uma vez que entendemos que formas particulares de territorialidade se traduzem em escolhas específicas para implantação dos sítios na paisagem, para organização de sistemas tecnológicos e para formas de manejo de recursos animais, minerais e vegetais também específicos, podemos elencar como principais os seguintes elementos do registro arqueológico necessários para encaminhar essa discussão: localização e inserção dos sítios na paisagem, coleções de vestígios líticos, cerâmicos, botânicos e ósseos – animais e humanos -, além de possivelmente a composição fisico-química dos sedimentos e solos referentes aos sítios arqueológicos.

Afim de encaminhar o conjunto de questões levantadas, propomos a construção de uma pesquisa arqueológica interdisciplinar, baseada numa perspectiva teórica que pensa a relação socioambiental de forma integrada ao longo do tempo.

Dentre as ações propostas do ponto de vista do patrimônio Arqueológico, podemos citar brevemente o levantamento, prospecção e a escavação de sítios arqueológicos das três áreas de pesquisa; triagem, curadoria e análise da cultura material proveniente das intervenções e coletas realizadas em campo, além da análise de coleções arqueológicas já existentes para as áreas de pesquisa disponíveis no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC; organização do acervo arqueológico gerado pela pesquisa de acordo com os protocolos da instituição de guarda do patrimônio arqueológico; criação de banco de dados georreferenciados contendo dados sobre a localização dos sítios arqueológicos e sobre os resultados das análises realizadas a partir de seus vestígios; realização de datações radiocarbônicas de amostras de carvão coletadas em campo associadas à ocupações arqueológicas; realização de lâminas petrográficas para análise de fontes de matéria-prima e tecnologia de materiais líticos e cerâmicos coletados. Tais abordagens visam criar um conjunto de dados detalhados para uma compreensão da diversidade e complexidade de trajetórias dos povos ameríndios nesta região ao longo do tempo.

Seja através da identificação e caracterização da estrutura da paisagem atual com o intuito de compreender seu processo de formação, seja através da busca de evidências paleontológicas que forneçam informações sobre aspectos paleoambientais da área selecionada, essas duas áreas do conhecimento, junto com a arqueologia, apresentam um alto potencial para trabalharmos de forma integrada as territorialidades ameríndias que tomaram forma no alto vale do Itajaí ao longo do Holoceno.

Ao final desta breve apresentação, podemos apresentar como resultados esperados desta pesquisa a construção de uma História Socioambiental Indígena de longa duração para o Alto Vale do Itajaí. A riqueza e complexidade dos dados gerados por esta pesquisa se desdobram em vários produtos culturais, sendo alguns deles:

  • Organização e análise do acervo arqueológico referente ao Alto Vale do Itajaí pertencentes ao Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC;
  • Ampliação da coleção de vestígios arqueológicos relacionados ao patrimônio cultural ameríndio que farão parte do acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC e portanto de amplo acesso a sociedade;
  • Criação de banco de dados georreferenciado para os sítios e coleções de vestígios arqueológicos oriundos da área de estudo que ao final do projeto será entregue ao Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC;
  • Publicação na forma de artigos nacionais e internacionais com os resultados obtidos no projeto;
  • Produção de um vídeo (áudio-visual) junto com os pesquisadores indígenas Laklãnõ Xokleng sobre a temática do projeto na sub-área da Terra Indígena Laklãnõ Xokleng que ao final do projeto será disponibilizado com acesso aberto na internet para a sociedade;
  • Criação de coleções de referência para os estudos arqueológicos de fontes de matérias-primas líticas e cerâmicas para o Alto Vale do Itajaí;
  • Palestras, oficinas e rodas de conversa na Terra Indígena Laklãnõ Xokleng e escolas estaduais e municipais existentes nas áreas de estudo;
  • Criação de um site sobre o projeto, no qual estarão disponíveis os diversos trabalhos realizados durante sua vigência, envolvendo formas de linguagem diversificadas.